“Governo transfere encargos, não descentraliza”

Em entrevista ao Empresas+®, Carlos Pinto de Sá, presidente da Câmara Municipal de Évora, tece duras críticas ao processo de transferência de competências do Governo Central para os municípios. O autarca assegura que este processo “deve ser parado de imediato” e que a regionalização “tem que avançar”.
Para Carlos Pinto de Sá, presidente da Câmara Municipal de Évora este não é um verdadeiro processo de descentralização, “ao contrário daquilo que tem sido afirmado. Aliás, nesse aspeto, a lei traz alguma verdade uma vez que fala em transferência de competências”. O autarca explica que “um verdadeiro processo de descentralização” deveria contemplar premissas que são inexistentes neste processo a começar pela implementação das regiões administrativas “de acordo com o previsto na Constituição Portuguesa, criando um Poder Regional eleito que substituiria aquele que atualmente existe e que é nomeado pelo Governo Central: a CCDR – Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional, entidade responsável por uma vasta lista de competências e que movimenta verbas significativas, nomeadamente os fundos comunitários”. O edil advoga que, com esta mudança, “poderíamos democratizar este nível da administração pública. Considero que para um verdadeiro processo de descentralização a regionalização é imprescindível”.
Carlos Pinto de Sá assevera que, ao contrário do que é muitas vezes propagandeado, a regionalização não traria aumento de despesas nem de cargos, “uma vez que a entidade regional [CCDR] já existe e está constituída. A diferença é que, neste momento, os seus membros são nomeados por Lisboa e prestam contas ao Governo Central e não às populações de cada região. Os custos de uma possível regionalização não seriam significativos. De atentar que todos os países ditos mais desenvolvidos são regionalizados”.
Aprender com erros antigos
Segundo o autarca, antes da implementação de um processo de transferência de competências seria importante que fossem estudadas aquelas que foram anteriormente transferidas, “no sentido de perceber como é que correu, se funcionou e se criou uma mais-valia real para as populações. Só assim o processo poderá evoluir e aprender com a experiência anterior”. Para o edil esta aprendizagem não foi acautelada e, “infelizmente, se olharmos para trás, podemos afirmar que as experiências anteriores correram mal e não foram proveitosas para os municípios e para as populações”. Para Carlos Pinto de Sá isso aconteceu porque, “tal como agora, foram transferidas competências, mas não foram transferidos os recursos que permitiriam cumprir essas mesmas competências. Os municípios tiveram que transferir verbas dos seus próprios orçamentos, fragilizando as suas competências próprias, para que conseguirem dar uma resposta efetiva às populações. Em termos práticos, o que aconteceu foi uma transferência de encargos e não uma verdadeira descentralização e a situação vai-se repetir”.
Para o edil valeria a pena estudar também o nível em que determinada competência deve estar, “o princípio adotado pela União Europeia, o da subsidiariedade, que defende que determinada competência deve estar no nível político em que seja mais eficaz, e esse não é, necessariamente, o da administração local. Por exemplo, o ordenamento do território tem que ter uma visão nacional e a sua ação tem que ser concertada. Há competências que devem estar na Administração Central, outras na Regional e outras na Local. Contudo, só com estudo e com análise é que podemos chegar a este tipo de conclusões”.
Garantir a universalidade
Carlos Pinto de Sá considera ainda que, para que exista uma descentralização, é necessário que esta venha acompanhada pela autonomia da decisão, ou seja, “os municípios devem poder decidir sobre as competências que lhes serão atribuídas. Não pode ser o Governo o único a decidir e os municípios transformarem-se em meras secretarias, que é o que se pretende nas áreas da saúde e da educação, por exemplo. Nestas, os municípios ficam responsáveis pelo processamento de salários dos funcionários, garantem as pequenas reparações, assim como o pagamento de todas as despesas correntes. As verdadeiras decisões continuam a ser tomadas pelo Governo sem que o município seja ouvido, o que faz com que não exista qualquer autonomia política”.
Por fim, para o autarca, todas as competências que obedeçam a um princípio de universalidade de serviço publico às populações, não podem ser colocadas ao nível do Poder Regional ou Local porque é ao Estado que compete garantir acesso igual a todos os cidadãos aos serviços públicos a que têm direito. Ora, faltando verbas atribuídas pelo Estado, “os municípios que têm uma maior capacidade económica vão conseguir suprir essa necessidade, o que não acontecerá em municípios com parcos recursos, o que fará com que as populações dos 308 concelhos tenham respostas diferentes, quando o serviço público deve ser igual para todos”.
Recursos insuficientes
Para o edil, o mais gravoso é que “a preocupação do Governo tem sido apenas a de transferir encargos. A lei é clara quando diz que não há aumentos na despesa pública. Mas como é isso possível quando todos sabemos que as atuais verbas são insuficientes e não estão a conseguir dar uma resposta efetiva às necessidades das populações em áreas tão vitais como a educação e a saúde?”, questiona Carlos Pinto de Sá que revela que, devido a esta questão, o Município, no passado, já realizou o processo contrário e devolveu uma competência ao Estado, “tudo porque este não cumpria com a transferência de recursos necessários à sua operacionalização”.
O autarca mostra preocupação com a operacionalização da competência da educação e advoga que, neste momento, o concelho apresenta um défice de 33 assistentes operacionais nas escolas “e isto para que estas funcionem com o mínimo de condições e de segurança. Existem crianças como necessidades educativas especiais que, por vezes, são obrigadas a ficar em casa, com os constrangimentos que isso acarreta para as famílias, porque a escola não tem assistentes operacionais suficientes para dar resposta a estas crianças. Este é apenas um dos muitos exemplos que podia dar. As situações não se podem continuar a repetir. Além disso, duas das nossas escolas necessitam urgentemente de requalificação. Mesmo assumindo que agora o Governo arcaria com essa despesa como seria daqui a dez anos quando o edifício necessitar novamente de intervenção? Quem pagaria essa obra? Considero que estas questões são demasiado sérias e importantes para que possam ser tratadas apenas do ponto de vista da obsessão pelo défice do Orçamento de Estado”.
O Município de Évora recusou a totalidade da transferência de competências em 2019 e 2020. Em 2021, “a lei diz que seremos obrigados a aceitá-las. Apesar disso, ainda tenho a esperança de que prevaleça o bom senso e que todo o processo seja revisto. Caso isso não aconteça queremos ter tempo necessário para nos prepararmos para lidar com essa imposição”, ressalva Carlos Pinto de Sá, que completa: “Acredito que se este processo continuar muitas autarquias e, sobretudo, as populações, vão sofrer com ele. A aceitação das competências e a consequente insuficiência nas verbas transferidas só vai acentuar, ainda mais, as assimetrias entre o Interior e o Litoral do País, entre os municípios mais ricos e aqueles que são mais pobres. Por tudo isto, julgo que seria pertinente que todo o processo fosse parado, por forma a que pudesse ser repensado e analisado”.