Salvaguardar os interesses da gente e da terra
Em entrevista ao Empresas +®, Fernando Queiroga, presidente da Câmara Municipal de Boticas, fala sobre a recente polémica ligada à prospeção e pesquisa de lítio prevista para o concelho, situação que a população de Covas do Barroso não aceita. O autarca é perentório e assegura que “a Câmara foi eleita pelo povo e é para defender o povo que aqui está. O nosso compromisso é com as pessoas e com a nossa população e vamos fazer tudo o que está ao nosso alcance para salvaguardar os interesses da nossa gente e da nossa terra”.
O Governo alega que o lítio é essencial para a transição energética, contudo a população de Boticas revela-se preocupada com a futura exploração deste recurso em Covas do Barroso, queixando-se de falta de informação sobre o processo. Qual a posição da Autarquia perante toda esta polémica?
A Câmara de Boticas estará sempre ao lado da sua população, fazendo tudo o que está ao seu alcance para salvaguardar os interesses da nossa gente e da nossa terra. É evidente para todos que este processo nasceu “enviesado” e foi muito malconduzido em todas as suas fases. A falta de informação e a contra-informação produzida foram notórias e a população do concelho de Boticas, em particular da freguesia de Covas do Barroso, que é a mais prejudicada e a mais afetada, sente-se enganada e revoltada com a forma como foi tratada, pressionada e intimidada por parte da empresa a quem foram atribuídos os direitos de prospeção e pesquisa. Em todo este processo, o Governo nunca manifestou abertura para ouvir a população, nem de forma mais direta, nem indiretamente, através das diferentes entidades públicas que tutela. Não se podem cometer estas atrocidades em nome do suposto “interesse público” e a pretexto da descarbonização. A Câmara de Boticas assumiu desde o início deste processo uma posição contra a atribuição da concessão de prospecção e pesquisa, dando pareceres desfavoráveis à mesma. Infelizmente, esses pareceres não são vinculativos e a Direção Geral de Energia e Geologia ignorou por completo a nossa posição.
Em declarações de janeiro de 2019, defendeu que em todo este processo “não estão salvaguardados” os interesses a população. Que interesses são esses?
Desde logo o direito à qualidade de vida nestas regiões. Não se pode ignorar que aqui vivem pessoas e aqui têm a sua vida e a sua fonte de sustento. A exploração mineira compromete todos estes pressupostos, com um impacto muito forte a nível ambiental, social e económico. A população não foi ouvida em todo este processo. Não teve informação do que todo este processo viria a ser nem muito menos foi ouvida. A opinião das pessoas nem sequer foi considerada. A licença de prospeção e pesquisa foi atribuída e, num “piscar de olhos começaram a chegar as máquinas e a iniciar os trabalhos, invadindo terrenos e destruindo a vegetação, para estupefação das pessoas que foram completamente surpreendidas.
O que estas pessoas pretendem é continuar a viver nas suas terras, a terem o direito de aqui criarem os seus filhos e a darem-lhes uma vida digna e com a qualidade que só estas regiões de montanha, marcadas pela ruralidade, têm. É óbvio que tudo isto compromete o futuro daquela população e do concelho de Boticas. As pessoas só querem salvaguardar o direito de viverem na sua terra e poderem ser felizes. De uma forma simples, mas honrada e sobretudo saudável.
Está prevista para este território uma mina de lítio a céu aberto, estando a ser feitas no terreno prospeções por parte da Savannah Resources. O investimento previsto para a exploração do minério neste local é de 500 milhões de euros. Não seria este um importante investimento para o Município do ponto de vista económico?
Nenhum investimento é suficientemente importante se puser em causa a qualidade de vida das pessoas. É um preço demasiado elevado a pagar pelo suposto desenvolvimento. As partes negativas têm um peso muito maior e é algo que não se justifica minimamente. A estratégia do Governo para a valorização do potencial de minerais de lítio e para a descarbonização não pode ser atingida prejudicando as populações do Interior do país e destas regiões marcadamente rurais. Toda uma estratégia de desenvolvimento delineada para o nosso concelho e para a nossa região, assente no desenvolvimento do turismo de natureza, onde o ambiente é característica fundamental, vai por “água abaixo”, dando uma “machada” fatal no trabalho que temos vindo a desenvolver nas últimas décadas. Repito: para o nosso concelho e para a região, os prejuízos são muito mais elevados do que qualquer benefício económico que possa advir da exploração dos minerais de lítio. Mesmo os números avançados são pouco credíveis e até ao momento ainda não nos foi apresentado um documento confiável com os mesmos.
O território onde a mina será instalada foi classificado como Património Agrícola Mundial, em 2017. Além disso, foi inviabilizada a construção de uma barragem para o mesmo local devido à deteção de uma espécie rara de mexilhão-de-rio [Margaritífera margaritífera]. O que acontecerá a esta espécie caso o projeto avance?
Não será apenas esta espécie, mas toda a flora e fauna que será afetada. Não podemos descurar que os habitats naturais seriam completamente adulterados e sabemos bem o impacto que tal causaria. Estamos em crer que haveria espécies que, pura e simplesmente, desapareceriam do nosso concelho. É que os impactos ambientais não se fariam sentir apenas em termos visuais. A qualidade do ar e da água, em particular das águas subterrâneas, será claramente afetada e isto tem, obviamente, implicações fortes nos ecossistemas.
Recentemente, João Galamba, Secretário de Estado Adjunto e da Energia, foi recebido, em Boticas, por populares em protesto, antes de uma visita ao Centro de Informação de Covas do Barroso. Nesse dia, o governante garantiu que se o Estudo de Impacte Ambiental for negativo ou se as medidas compensatórias não puderem ser aplicadas pela empresa não haverá mina de lítio em Boticas. Quando é que este estudo estará concluído e quando será apresentado?
Tanto quanto nos foi dado a conhecer, o estudo de impacte ambiental deverá ser conhecido até ao final deste ano. Contudo, duvido que tal aconteça, uma vez que esse prazo está prestes a esgotar-se. Como tem acontecido em todo este processo, o estudo de impacte ambiental deverá ser mais um procedimento que se irá “arrastar” e, sinceramente, duvidamos dos resultados que o mesmo irá apresentar. Mas, a crer nas palavras do Sr. secretário de Estado, estamos muito confiantes porque nessa altura da apresentação do estudo de impacte ambiental iremos contrapor com os nossos argumentos, pois os efeitos nefastos são muitos e a razão está do nosso lado.
Está confiante de que a população verá as suas pretensões satisfeitas?
Estou confiante na resiliência da população e sei que não iremos baixar os braços e faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para travar o andamento de todo este processo. Lutamos com as armas de que dispomos e acredito que a união continuará a fazer a força. O Governo tem que olhar com seriedade para esta região e para as pessoas que persistem em aqui viver. É um direito da população querer continuar a viver nestas regiões e a lutar pela qualidade de vida. Acredito que, todos juntos, iremos alcançar as nossas pretensões.
Se a decisão for contrária àquela que a população espera,a Autarquia envolver-se-á nesta luta? Que ações estão previstas?
Nem sequer equaciono que a decisão seja contrária às pretensões da população, porque se assim for mal estará a nossa democracia. As pessoas têm o direito de se fazerem ouvir e as decisões a tomar deverão ir ao encontro da salvaguarda dos seus direitos e interesses. Afinal de contas não se pede nada do outro mundo. Apenas queremos continuar a viver na pacatez da nossa ruralidade, não aceitando que as nossas vivências, a nossa cultura, usos, costumes e tradições possam ser postos em causa por interesses meramente económicos e cujos contornos ainda não são conhecidos na totalidade, envolvendo interesses que não são do conhecimento público.
Se for preciso avançar com outro tipo de medidas, obviamente que não descuramos esse cenário. A Câmara de Boticas foi eleita pelo povo e é para defender o povo que aqui está. O nosso compromisso é com as pessoas e com a nossa população.
A opinião da população e da Autarquia foi consultada sobre este assunto? Como classifica a prestação do Governo?
A Autarquia deu pareceres negativos à atribuição da concessão para prospecção e pesquisa, assim como aos pedidos de alargamento da área de prospecção e em tudo o que foi consultada neste processo. Como já referi anteriormente, como esses pareceres não têm carácter vinculativo, e como não interessam à estratégia definida pelo Governo, foram pura e simplesmente ignorados sob o pretexto do alegado “interesse nacional”. Este processo é demonstrativo do “autismo” deste Governo e da sua política do “quero, posso e mando”, para quem os interesses económicos se sobrepõem claramente à vontade e aos direitos das populações.
Existe muita desinformação a circular em relação a esta questão. A Autarquia já organizou mesmo uma sessão de esclarecimento. Que balanço faz da iniciativa levada a cabo? Estão outras ações como esta previstas?
Temos procurado que haja o máximo de informação para a nossa população e que esta esteja envolvida e por dentro de todo o processo, para não ser iludida com promessas vãs, enganada e ameaçada. As sessões de esclarecimento têm servido para isso mesmo, muito embora sintamos que, da parte da empresa, fique muito por dizer e haja aspectos que pura e simplesmente não querem abordar. Vamos continuar a exigir sermos informados e vamos mantendo, simultaneamente, a nossa população informada e tal deverá passar por novas sessões de esclarecimento, pois queremos que seja tudo colocado “preto no branco”. Toda a informação a que a Câmara tem acesso dá dela conhecimento à população.
As minas de lítio são ou não um perigo para o ambiente?
Obviamente que sim. Desde logo pelos impactos visuais, mas também pela descaracterização da paisagem e dos ecossistemas. A fase da extração resulta num acumular de poeiras que serão, obviamente, prejudiciais para a saúde, já para não falar do ruído resultante dessa extração, que será nefasto não só para os ecossistemas, mas também para a população humana. A fase da lavaria dos minérios terá implicações ao nível da contaminação dos lençóis freáticos e dos solos, com a deposição dos minerais e detritos resultantes desse processo. Com isto, a contaminação ambiental é uma inevitabilidade, pouco adiantando que sejam prometidos “procedimentos e métodos altamente inovadores” que ninguém conhece nem sequer são prática em mais nenhuma exploração a nível mundial.
Também nos preocupa, naturalmente, a recente classificação desta região como Património Agrícola Mundial, por parte da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura [FAO], já que, avançando a exploração de lítio, pode comprometer seriamente essa classificação, o que teria efeitos muito negativos para a promoção e atractividade do concelho de Boticas e de toda esta região.
Como encara toda esta polémica relacionada com os contratos de concessão de exploração de lítio, assunto que já chegou à Assembleia da República?
Uma trapalhada. Aliás, algo a que este Governo já nos habituou, atirando sempre as culpas para os antecessores que, esses sim, são “pintados” como os vilões da história. Para este Governo as pessoas são o que menos importa e estas regiões do Interior do país são as mais sacrificadas.